domingo, 30 de maio de 2010

Onde o verde remanesce.

Éramos quatro. Efetivamente falando, três e meio. Hélio não contava como um inteiro. Era um sujeito esquisito, cheio de teorias da conspiração e tiques nervosos. Só tinha alguma valia quando o assunto dizia respeito à apicultura, arte de criar abelhas – e por Deus, garanto que os nossos assuntos nunca diziam respeito à ciência da criação de abelhas. Mesmo assim, gostávamos de tê-lo no grupo. Sua excentricidade não era algo de todo ruim, vez ou outra nos rendia boas risadas. Lúcio vivia implicando:
- Vê se cresce! Livre-se dessas abelhas, vire homem.
Em resposta, ele discorria longamente sobre como os sumérios, civilização impetuosa e viril que habitara no território inóspito da atual Mesopotâmia, sobrevivera a grandes provações graças a uma dieta rica em mel. Nunca sabíamos quando essas coisas eram verdade. Hélio tinha o intrigante hábito de inventar fatos históricos.
Nessas discussões, Victória e eu pouco aparecíamos. Jovens e apaixonados, ficávamos omissos, entretidos em nossos beijos e carícias. Era difícil imaginar uma vida melhor que aquela. Tínhamos tudo. Frequentemente, falávamos sobre uma eternidade juntos. Não apenas nós, amantes em chamas, mas sim todos os quatro. Ou três e meio, que seja. E eu pensava sobre esse “meio”. Indagava-me se ele era tão feliz quanto o resto de nós, e, quando o fazia, sempre pendia para uma resposta negativa. Sua mente confusa decerto impedia-lhe de ambições futuras, de planejar algo grandioso. Bem provável que jamais fosse engrandecer-se, verdade seja dita. Sentia-me triste por ele.
Com o passar do tempo, previsivelmente, nossas juras foram se frustrando. Fosse por carreira promissora ou por questões familiares, desmembramo-nos aos poucos. Envelhecemos separados, tocando nossas respectivas vidas com raras notícias uns dos outros. Hoje, sei que Lúcio é deputado. Homem importante, cheio de obrigações e responsabilidades. Victória tornou-se conceituada empresária, tem agenda lotada e poder aquisitivo invejável. Eu também me saí bem: escrevo semanalmente para um par de jornais, levando uma vida tranquila e confortável. Apenas Hélio não mudou. Continua entretido com suas abelhas e fiel à crença de que, em qualquer dia desses, ficará vigoroso como um sumério.
Apesar de saber da vida de cada um, apenas de uma coisa estou convicto: o meio é o único inteiro. Eu estava errado, afinal. Sua mente podia ser confusa, mas era, também, tranquila. Era feliz, inocente. Ele foi o único que preservou alguma característica qualquer que tínhamos na juventude e aos poucos deixamos escapar. Nosso gramado outrora fora verde, mas apenas o dele verde ainda remanesce.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Enigma de Phakzan.

Dois bardos vagavam errantes por uma alameda escura. Não tinham origem, tampouco destino. Afim de acelerar a percepção da passagem do tempo, que parecia arrastar-se pesadamente em meio àquele ermo vestido de breu, puseram-se a cantar e recitar. Cedo ou tarde, porém, tudo acaba - e o tempo continua. Quando o estoque de poemas findou, passaram, portanto, a trocar enigmas. Eis aqui o primeiro.



Cinco homens robustos, reunidos a cantar
Aguardam zelosa mulher que trará o jantar.
Famintos e alegres, os cinco homens conversam
Mas um deles se engasga e apenas quatro restam.

O pai, Phakzan, é quem tristemente faleceu.
Bebeu um longo gole e envenenado morreu.
Homem de palavra, homem para sempre honrado;
Ninguém entendeu por que fora assassinado!

Glauco, filho mais velho, atônito levantou.
Segurou o corpo frio e do chão o retirou.
Gritou desesperado, qual animal assustado:
Morto está nosso pai, quem o terá matado?

Diope, mais jovem, chorou caído sobre a mesa.
Digeriu a cena com grande pesar e tristeza.
Correu para a cozinha, trouxe a mãe e exclamou:
Hei-de pegar o meliante que a vida lhe ceifou!

Gratelo, o caçula, nos olhos já beirava loucura.
Ergueu-se rápido da cadeira, como quem algo procura.
Não sabia o que fazer, não sabia para onde ir;
Qual tormenta é maior que ver o pai sucumbir?

Zelto, o cunhado, encarou os irmãos em lamúria
E o seguinte proferiu sobre aquela injúria:
Seu pai morreu em casa, destino friamente traçado,
Quem fez esse defunto foi um filho desgraçado!

Ana, esposa de Phakzan, há de encontrar a chave.
Seus olhos astutos enxergam como os de uma ave.
Ana, vai aos campos, junte-se à grama!
Reúna as peças soltas e desvende a trama.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Calcanhar de Platão.

Conceda-me imaginários instantes
Desses lábios tão avermelhados.
Existem raríssimos diamantes
Que não precisam ser lapidados.

Não deixe que eu a toque,
Jamais permita-me tê-la.
Você só continuará perfeita
Se eu puder apenas vê-la.

Sinto-me em mar aberto
Sem meu varonil bergantim,
Mas nele jamais afogarei
Enquanto preservá-la assim.

Fraquezas, sim, são muitas!
E somente uma pode me derrubar.
Preciso apenas da minha mente
Para viver e para amar.