sábado, 31 de julho de 2010

Inferno.

Os dois morriam. Pouco importa a razão. Sob sol escaldante e nuvens que sequer cogitavam existir, barganharam com a agonia e dela arrancaram qualquer misericordioso vestígio de força naqueles corpos esmagados por escombros de guerra. Usaram-na para enunciar o prelúdio da tocata que estava por vir; noutras palavras, para filosofar antes do perecimento de seus corpos.
O primeiro – que em nada se diferenciava do segundo, dado o deplorável estado dos morimbundos – começou.
- Em que tu crês, aliado?
- Creio na morte.
- Ora, naturalmente. Refiro-me às tuas crenças para o nosso destino posterior a ela.
- Essa é boa!
- O que foi?
- A tua pergunta, é isso que foi.
- Fostes irônico?
- Decerto.
- E de onde tiras essa ironia num momento tão devasso?
- Ela carece de ser aproveitada, não mais terei oportunidade para usá-la.
- Pois responda, pelo menos.
- Já respondi.
- Então um de nós deve estar delirando, não recebi resposta alguma.
- Disse que não terei mais oportunidade de usá-la. É isso. Encontramos fim aqui, na sarjeta encardida de sangue dos nossos iguais.
- Crês que no nosso futuro não há absolutamente nada?
- Exato.
- E como é não haver nada?
- Do jeito que foi antes de haver alguma coisa.

Fez-se silêncio durante alguns instantes. Metros acima, abutres rondavam o local, ansiosos pela chegada dos mortos que lhe garantiriam a vida. Foi a vez do segundo homem perguntar.

- E tu, no que acreditas?
- Acredito no céu e no inferno.
- E para onde iríamos?
- Tens dúvida?
- Muita!
- Eu não tenho. Fizemos muito mal e iremos para o inferno.
- Mas qual é a medida do bem e do mal? Tudo que temos são diretrezes assumidas por meio de suposições, valores criados por nós mesmos. De nada realmente sabemos, e isso faz tanto do céu quanto do inferno possibilidades plausíveis.

Não houve réplica. O soldado emudeceu e sucumbiu de olhos abertos. Foi seguido por seu aliado, pouco depois. O novo plano era rigorosamente igual ao primeiro, exceto pelo fato de agora os indivíduos serem espíritos incorpóreos que só enxergavam outros em igual condição. Tão numerosos eram que formavam um cenário tal qual o que presenciavam em vida.

- Veja, aliado, veja! Tu estavas errado! Não fomos sentenciados a um nada, este lugar é a mesma coisa que tivemos em vida!
- Eu vejo. No fim das contas, bom companheiro, mais do que o meu erro, tivemos o seu acerto. Continua tudo igual. Fomos mesmo para o inferno.