quarta-feira, 6 de julho de 2011

Sobre Sonhar.

E havia aquele rapaz. Pobre, de magreza severa e pertences poucos, de andares maltrapilhos e de Domingos que não traziam conforto ao corpo. Mas sonhava. Errava sem pressa pelo mundo, fundo nas tocas que cavou. Bocas sem dono contavam que nunca almejou um tostão; e línguas irascíveis que gozavam das bocas como donas, oxalá se somente por incompreenão, acrescentavam que era louco. Só poderia! Qual homem de mente sã viveria feliz na sarjeta? Nenhum, explicavam os cérebros, incapazes de dizer se eram donos do próprio pensamento.

De qualquer forma, ele sorria. Meio perdido e deveras achado, deslocado sob o sol e rei quando caía a noite. Depois da alvorada, ia para qualquer canto ermo da rua e se perdia em devaneios. Empoleirava-se na penumbra, decerto por ela lhe remeter ao sono que, por sua vez, remetia o agora plebeu às horas de altivez experimentadas durante a madrugada. Quando nos deparávamos com ele, seus olhos abertos contavam o que viram quando estavam fechados. Exalavam uma beleza que nós não conseguíamos enxergar.

A cidade era miúda, mas nela tinha de tudo. Gente local e gente de fora, homens muito ricos e homens muito cultos. E havia aquele rapaz, que afinal jamais fora pobre. Errava sem pressa por suas tocas, desenterrando tesouros que nos eram peculiares. Rico pelos valores que criou. Se me perguntassem, diria que era feliz. Talvez o único naquela cidade em que de tudo havia.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Tempos em que seu pai era você.

Fundiam-se com as coxas, tão apertadas eram. E pro diabo com a gradação. Continuavam despencando pelas pernas sem folgar um dedo que fosse, para então, já batendo à soleira dos tornozelos, arreganharem as bocas num contraste abrupto, embrulhado com o charme dos anos dourados. Vinham as catedrais no encalço do rapaz, clamando de volta pelos sinos roubados que não tilintavam. De resto, uma camisa de colarinho aberto e está completo o traje.

Sentado sobre o espaçoso capô do Opala, viu cruzar a esquina um homem feito de ébano; antítese ambulante com sua jaqueta branca. Somando a cabeleira alta aos sapatos plataforma, erguia-se com mais de dois metros de altura. Cumprimentaram-se com empolgação.

- Diz pra mim, irmãozinho: hoje tem?
- Ô!

Falavam com sugestões de sorrisos à beira de explodir no rosto. Quando os postes começaram a acender suas luzes em respeito à noite que caia, chegou mais um. Sandálias bem presas e vestes folgadas, de cabelos longos que nunca se preocuparam em estar arrumados.

- Alô, alô, rapazeada! - saudou o hippie.

E todos riram e conversaram e riram mais um pouco. Sempre que os brotos passavam, dois pentes eram rapidamente sacados por Topete e Black Power, que ronronavam com o vigor de suas duas décadas. Findada a prosa, entraram no carro e foram lá viver suas juventudes com um esplendor digno de imortalidade. Desgraçadamente, ela não veio. Quem veio foi Mark Chapman e seus quatro pedaços de chumbo, que de alguma forma derrubaram Lennon e, anos mais tarde, deram espaço para Cobain. Após ele, outros agouros ainda piores. Nesse contexto, novos jovens se reúnem.

- Oi?
- Tá me ouvindo?
- Mal pra caralho. Porra, Maxwell, arruma esse Skype aí.
- Fica de boa, mano. Quando dar nós arruma, já é?
- Viado...
- Tem que juntar dinheiro, jow. Já é semana que vem o show do Pe Lanza.
- Deu nóis!
Na tela do computador, sobe o aviso: youcanthurtmeanymore entrou no Skype.

- Ei, gente...
- Colé, emo. - responderam em coro.
- Ai, gente, pára. Não sou emo, que saco.

E partiram então para viver o novo mundo. Conversaram, jogaram RPG e foram azarar meninas no chat da Uol. A madrugada teria sido perfeita, não fosse por seus respectivos pais e o barulho que faziam na sala - três velhos nostálgicos de vitrola ligada, ouvindo as velharias de outra época.

Das histórias cujo fim o Japão não viu.

Onda.

Sentiram-na quebrar. Esticaram as pernas na areia fina, solta como se mãos jamais vistas houvessem depositado grão por grão na calada dessas noites que ninguém ouve nada lá fora. Quando a água lhes beijou os dedos, ele sorriu e ela corou. Aí ele também corou. Tímidos, voltaram os olhos para direções diferentes. Um fitava o mar, a outra, a orla.

Onda.

Ele olhava perto, sempre evitando o horizonte. Era como se a vastidão erma anunciasse que o vazio logo seria preenchido por caravelas, todas tripuladas por arautos de um passado agourento. Subiu os olhos, pois. Encontrou, no céu, um vislumbre de futuro; e na moça, uma companhia para vivenciá-lo.

Onda.

Ela contemplava o litoral. Tentava especular quantas daquelas muitas pessoas estiradas na areia já haviam se sentido daquele jeito. Torcia para que fossem todas. Torcia para que a mão dele escorregasse mais três centímetros e encontrasse a dela. Torcia, também, para que as areias da ampulheta ficassem estáticas como aquelas, imortalizando o momento.

Nada.

- Dizem que sua afinidade com uma pessoa pode ser medida pelo quão confortável você fica ao lado dela quando estão em silêncio. - arriscou o rapaz.
Ela gargalhou.
Ele não entendeu.
- Pulp Fiction. Não sabia que gostava de filmes ocidentais.
Ele praguejou a investida falha.
Ela riu um pouco mais.

Nada.

As mãos se tocaram, a água recuou e o silêncio voltou. Fitaram-se por um tempo que certamente foi longo, pois findado ele, eram os únicos remanescentes na areia. Não ligaram.

Nada.

Ele estufou o peito e tentou reunir coragem. Nenhuma apareceu. Frustrado na vã empreitada, buscou ajuda. Lembrou-se da inabalável fibra dos samurais, dos grandes Xôguns e de tudo que Tarantino fez a personagem de Bruce Willis enfrentar. Todos triunfaram, ele teria que igualar o feito. Sem corar, de mãos firmes em um mundo que agora parecia tremer, o rapaz fez-se homem:
- Não sei quanto a você, mas essa sensação é nova para mim. Quero saber se podemos

Onda.

terça-feira, 15 de março de 2011

Ciclo Matrimonial.

Em pomposa grinalda
Do vestido branco
De longa cauda
Ela delicada
Sorrisos muitos
Debaixo do véu
Ele nervoso
No terno preto
A cara de réu
Defronte o padre
Juraram amores
Fizeram votos
Jogaram as flores
Ela chorou
Na liteira de ouro
Desejou que o amor
Fosse duradouro
Ele hesitou
Sentiu a clausura
De iminentes amarras
Da vida futura
Foram pra Lua
De só meio mel
Ele na Terra
Ela no céu

Regressam ao lar
Abrem presentes
A esposa dedicada
Lustrando talheres
O marido lembrando
De outras mulheres
Prossegue o enlace
De vidas distintas
Nas noites fornicam
E a moça inocente
Concebe no útero
O fruto indecente
Filho do adúltero
Estouram conflitos
- Quer saber de um negócio?
Vá-se embora, vagabundo,
Eu quero o divórcio!
Cresce a criança
Sem mãe e sem pai
Trilha seu caminho
Sem saber aonde vai
Torna-se então
Jovem frustrado
Que nunca entendeu
O que houve de errado
Vai parar num altar
Sem saber o que faz
Ao lado da noiva
Em pomposa grinalda
Do vestido branco
De longa cauda

sábado, 9 de outubro de 2010

Cale-se, John.

Uma mãe gritou:
- Cale-se, John! Está tarde, vá dormir.
E ele não foi.
Mas se calou.

Braços de alcance curto, contrários aos sonhos, envolviam os joelhos franzinos do menino maestro que ritmava um lamento censurado. Que ritmava tudo. Qualquer rufião poderia pegar um banjo e farrear noite adentro, dedilhos brutos em ruídos de escultura tosca.
Era preciso genialidade para cantar em silêncio.
E ele cantou.

Cresceu e fez da vida o que todos sabem; saber oriundo não de pesquisas, mas da influência direta em todos os vivos. Galopou em glória numa Cruzada que não espalhava palavras religiosas até qualquer Terra dita Santa, mas música a qualquer recôndito, sagrado ou profano. Antes de bons ou maus, faziam-se ouvintes.
Era preciso coragem para desbravar o mundo.
E ele desbravou.

Os ponteiros do relógio giraram. Qual meliantes de passos sinuosos, furtaram do prado o vento; dos homens, o tempo. Um a um, calaram a todos.

Chegou o dia em que disseram:
- Cale-se você também, John. A hora chegou, vá dormir.
E ele foi.
Mas jamais se calou.


-

Humilde e despretensiosa homenagem a John Lennon, nascido em 9 de outubro de 1940.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Louco.

Alcunhas aos montes lhe eram atribuídas, sequer uma que não fosse pejorativa. Zombar do alienado esquizofrênico era cruel e também pecado, disso ninguém, da mais distinta senhora cristã ao borracheiro pagão, discordava. Um risinho de cá e uns murmúrios durante o chá, entretanto, decerto não eram o suficiente para mandar alguém ao fogo do inferno. Quatro Pai Nosso e três Ave Maria que já está tudo pago.
Foi-se embora a graça quando enclausuraram o doente num hospício. Não findou por empatia ou compaixão, tampouco arrependimento, mas pela elementar consequência de que agora A Graça não mais perambulava pelas ruas. Vejamos, pois, o que fazia.

- Você, acorda.
- Deixa-me! Não enxergas que sou doente?
- Quê tens?
- Não que seja de teu interesse, enxerido dos diabos, mas respondo assim mesmo. Tenho espectros.
- Essa é nova! Quer dizer então que é esta a enfermidade; tu padeces de espectros?
- Já não disse que sim? - bufou o homem, abrindo os olhos para conhecer seu interlocutor.
Era um bule.
- Vê? - ele continuou – És um de meus espectros, fedes à tormenta e ao agouro.
- Ora, só pode ser para rir. Inventas uma condição e ainda me vens com isso. Lança ao menos um argumento que justifique a calúnia, patife! Desafio-te.
- Cala-te, bule. Tua existência como ser falante só se dá em minha cabeça, não és real.
- Qual objeto ignoto? Sai pra lá! Sou tão real quanto essa tua boca difamatória.
- Não como pensante e passível de interação.
- Quem garante que não? Até onde sabemos, podem estar todos, exceto a ti, vivendo um devaneio. Só que falam com pessoas, não com bules. E se a realidade sou eu?
Nasceu um silêncio fúnebre, durante o qual todos os móveis do quarto balançaram-se em aprovação.
- Ele está certo. - disse um crucifixo de madeira que pendia próximo à cama. Ou talvez tenha sido o Cristo que repousava nele.
- Bobagem. - recomeçou - A sugestão pautada aqui é que um único indivíduo, eu, conhece a verdade. Os outros bilhões se iludem. Quanta tolice!
- Não entendeste, bom homem. Não é nada disso que proponho. O raciocínio é o seguinte: se de nada efetivamente sabemos, então qual é nossa envergadura moral para definir realidade? Vossos parâmetros são baseados exclusivamente no que acreditam conhecer ou tangir às especulações que fazem; não significa que conheçam nem também que ponderem na direção correta.
- Insinuas que a vida é, de um todo, ilusão?
- Talvez seja, mas não é onde quero chegar. Presos num lamacento patamar de ignorância, nada nos resta senão usurpar das oferendas do muito limitado intelecto que temos.
Outra pequena pausa para digestão.
- Engenhoso esse teu credo. Calha concluir que louco eu não sou, uma vez que num mundo de todos errados, vivemos com nossos respectivos certos.
- Pronto, chegou lá. Percebes agora que não és enfermo de mal algum?
- Percebo. Mas que bule genial; cada qual com seu real!
- E essas rimas bestas?
- Empolguei-me...

Segue-se o diálogo e o psiquiatra aparece, e aqui não se pode dizer se a estória começa ou termina. Até onde todos sabem, O Louco pode ter acabado de chegar.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Perecível.

Melancólico suspiro do velho
Que faz, dentro d'um prato,
Jazer certo antigo retrato
Guardado com esmero secular

Velho do suspiro melancólico
Que fora jovem viril, outrora
Mas sofrido definha agora
Num rugoso leito qualquer

Pois riu da cruel ironia:
Novo em velha fotografia
Velho no novo cenário

E chorou pelos tempos de rei
Chorou por não ser Dorian Gray
Chorou por doer ao chorar