sábado, 9 de outubro de 2010

Cale-se, John.

Uma mãe gritou:
- Cale-se, John! Está tarde, vá dormir.
E ele não foi.
Mas se calou.

Braços de alcance curto, contrários aos sonhos, envolviam os joelhos franzinos do menino maestro que ritmava um lamento censurado. Que ritmava tudo. Qualquer rufião poderia pegar um banjo e farrear noite adentro, dedilhos brutos em ruídos de escultura tosca.
Era preciso genialidade para cantar em silêncio.
E ele cantou.

Cresceu e fez da vida o que todos sabem; saber oriundo não de pesquisas, mas da influência direta em todos os vivos. Galopou em glória numa Cruzada que não espalhava palavras religiosas até qualquer Terra dita Santa, mas música a qualquer recôndito, sagrado ou profano. Antes de bons ou maus, faziam-se ouvintes.
Era preciso coragem para desbravar o mundo.
E ele desbravou.

Os ponteiros do relógio giraram. Qual meliantes de passos sinuosos, furtaram do prado o vento; dos homens, o tempo. Um a um, calaram a todos.

Chegou o dia em que disseram:
- Cale-se você também, John. A hora chegou, vá dormir.
E ele foi.
Mas jamais se calou.


-

Humilde e despretensiosa homenagem a John Lennon, nascido em 9 de outubro de 1940.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Louco.

Alcunhas aos montes lhe eram atribuídas, sequer uma que não fosse pejorativa. Zombar do alienado esquizofrênico era cruel e também pecado, disso ninguém, da mais distinta senhora cristã ao borracheiro pagão, discordava. Um risinho de cá e uns murmúrios durante o chá, entretanto, decerto não eram o suficiente para mandar alguém ao fogo do inferno. Quatro Pai Nosso e três Ave Maria que já está tudo pago.
Foi-se embora a graça quando enclausuraram o doente num hospício. Não findou por empatia ou compaixão, tampouco arrependimento, mas pela elementar consequência de que agora A Graça não mais perambulava pelas ruas. Vejamos, pois, o que fazia.

- Você, acorda.
- Deixa-me! Não enxergas que sou doente?
- Quê tens?
- Não que seja de teu interesse, enxerido dos diabos, mas respondo assim mesmo. Tenho espectros.
- Essa é nova! Quer dizer então que é esta a enfermidade; tu padeces de espectros?
- Já não disse que sim? - bufou o homem, abrindo os olhos para conhecer seu interlocutor.
Era um bule.
- Vê? - ele continuou – És um de meus espectros, fedes à tormenta e ao agouro.
- Ora, só pode ser para rir. Inventas uma condição e ainda me vens com isso. Lança ao menos um argumento que justifique a calúnia, patife! Desafio-te.
- Cala-te, bule. Tua existência como ser falante só se dá em minha cabeça, não és real.
- Qual objeto ignoto? Sai pra lá! Sou tão real quanto essa tua boca difamatória.
- Não como pensante e passível de interação.
- Quem garante que não? Até onde sabemos, podem estar todos, exceto a ti, vivendo um devaneio. Só que falam com pessoas, não com bules. E se a realidade sou eu?
Nasceu um silêncio fúnebre, durante o qual todos os móveis do quarto balançaram-se em aprovação.
- Ele está certo. - disse um crucifixo de madeira que pendia próximo à cama. Ou talvez tenha sido o Cristo que repousava nele.
- Bobagem. - recomeçou - A sugestão pautada aqui é que um único indivíduo, eu, conhece a verdade. Os outros bilhões se iludem. Quanta tolice!
- Não entendeste, bom homem. Não é nada disso que proponho. O raciocínio é o seguinte: se de nada efetivamente sabemos, então qual é nossa envergadura moral para definir realidade? Vossos parâmetros são baseados exclusivamente no que acreditam conhecer ou tangir às especulações que fazem; não significa que conheçam nem também que ponderem na direção correta.
- Insinuas que a vida é, de um todo, ilusão?
- Talvez seja, mas não é onde quero chegar. Presos num lamacento patamar de ignorância, nada nos resta senão usurpar das oferendas do muito limitado intelecto que temos.
Outra pequena pausa para digestão.
- Engenhoso esse teu credo. Calha concluir que louco eu não sou, uma vez que num mundo de todos errados, vivemos com nossos respectivos certos.
- Pronto, chegou lá. Percebes agora que não és enfermo de mal algum?
- Percebo. Mas que bule genial; cada qual com seu real!
- E essas rimas bestas?
- Empolguei-me...

Segue-se o diálogo e o psiquiatra aparece, e aqui não se pode dizer se a estória começa ou termina. Até onde todos sabem, O Louco pode ter acabado de chegar.