sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Louco.

Alcunhas aos montes lhe eram atribuídas, sequer uma que não fosse pejorativa. Zombar do alienado esquizofrênico era cruel e também pecado, disso ninguém, da mais distinta senhora cristã ao borracheiro pagão, discordava. Um risinho de cá e uns murmúrios durante o chá, entretanto, decerto não eram o suficiente para mandar alguém ao fogo do inferno. Quatro Pai Nosso e três Ave Maria que já está tudo pago.
Foi-se embora a graça quando enclausuraram o doente num hospício. Não findou por empatia ou compaixão, tampouco arrependimento, mas pela elementar consequência de que agora A Graça não mais perambulava pelas ruas. Vejamos, pois, o que fazia.

- Você, acorda.
- Deixa-me! Não enxergas que sou doente?
- Quê tens?
- Não que seja de teu interesse, enxerido dos diabos, mas respondo assim mesmo. Tenho espectros.
- Essa é nova! Quer dizer então que é esta a enfermidade; tu padeces de espectros?
- Já não disse que sim? - bufou o homem, abrindo os olhos para conhecer seu interlocutor.
Era um bule.
- Vê? - ele continuou – És um de meus espectros, fedes à tormenta e ao agouro.
- Ora, só pode ser para rir. Inventas uma condição e ainda me vens com isso. Lança ao menos um argumento que justifique a calúnia, patife! Desafio-te.
- Cala-te, bule. Tua existência como ser falante só se dá em minha cabeça, não és real.
- Qual objeto ignoto? Sai pra lá! Sou tão real quanto essa tua boca difamatória.
- Não como pensante e passível de interação.
- Quem garante que não? Até onde sabemos, podem estar todos, exceto a ti, vivendo um devaneio. Só que falam com pessoas, não com bules. E se a realidade sou eu?
Nasceu um silêncio fúnebre, durante o qual todos os móveis do quarto balançaram-se em aprovação.
- Ele está certo. - disse um crucifixo de madeira que pendia próximo à cama. Ou talvez tenha sido o Cristo que repousava nele.
- Bobagem. - recomeçou - A sugestão pautada aqui é que um único indivíduo, eu, conhece a verdade. Os outros bilhões se iludem. Quanta tolice!
- Não entendeste, bom homem. Não é nada disso que proponho. O raciocínio é o seguinte: se de nada efetivamente sabemos, então qual é nossa envergadura moral para definir realidade? Vossos parâmetros são baseados exclusivamente no que acreditam conhecer ou tangir às especulações que fazem; não significa que conheçam nem também que ponderem na direção correta.
- Insinuas que a vida é, de um todo, ilusão?
- Talvez seja, mas não é onde quero chegar. Presos num lamacento patamar de ignorância, nada nos resta senão usurpar das oferendas do muito limitado intelecto que temos.
Outra pequena pausa para digestão.
- Engenhoso esse teu credo. Calha concluir que louco eu não sou, uma vez que num mundo de todos errados, vivemos com nossos respectivos certos.
- Pronto, chegou lá. Percebes agora que não és enfermo de mal algum?
- Percebo. Mas que bule genial; cada qual com seu real!
- E essas rimas bestas?
- Empolguei-me...

Segue-se o diálogo e o psiquiatra aparece, e aqui não se pode dizer se a estória começa ou termina. Até onde todos sabem, O Louco pode ter acabado de chegar.

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